Começa o pagamento da 2ª parcela do Pé-de-Meia

Os Novos Gladiadores

.Roma, junho de verão, ano X da era Cristã. É meio da tarde o clima está seco e a poeira ocupa uma grande porção do ambiente, do lado de fora do Coliseu pessoas passam de um lado para o outro freneticamente para entrar e ver o grande espetáculo. Acotovelam-se ansiosamente tentando ocupar um lugar onde a visibilidade seja bem ampla, vendedores oferecem seus produtos feitos na hora, o pão assado no barro servido com um pedaço de queijo ou carne de carneiro, o vinho novo recém retirado do lagar e muito fermentado exalta os ânimos de todos que o sorvem em goles generosos.

O sapateiro acelera o conserto da sandália do centurião na porta principal, “pode ser que consiga entrar sem que me notem, ou até como agradecimento se nada cobrar”, gostaria de ver o Maior Espetáculo do mundo, ouvir o brado do povo de dentro da concha acústica e sentir todo o seu ressoar. Os cavalos puxando as enormes e pesadas carruagens de batalha entrecortaram meu pensamento, o suor resplandecia sobre o pelo dos animais, como gotas de ouro enquanto a crina de cor contrastante vibrava cada vez que o animal balançava furiosamente a cabeça. Seu cavaleiro desceu olhou toda a imponência da estrutura á sua frente, suspirou e fez sinal para que as portas colossais se abrissem.

Entro e sinto uma vibração percorrer todo o ambiente como se fosse um murmúrio que só o corpo pode perceber, um frio mortal percorre a espinha até chegar á nuca, onde permaneço com um leve formigamento enquanto a boca resseca e passo suavemente a língua pelos lábios, sentindo o gosto de terras distantes trazido durante a viagem, subo os degraus laterais de pedra fria até chegar ao Observatorium de onde tenho visão de todos os ângulos da arena. Espero pacientemente para que todos se acomodem e façam silêncio e seja lida a proclamação do dia.
Lá em baixo as portas de ferro rangem pesadas ao abrir, delas saem figuras hercúleas vindas de todos os cantos do mundo conhecido, correntes grossas presas aos tornozelos mostram a sua condição de escravos capturados durante guerras, contendas ou como parte de pagamento de alguma divida, ainda assim o destino daquelas almas que ali estão eretas reluzindo ao sol com suas armaduras e coragem está selada. Ouve-se a saudação de combate “Aqueles que vão morrer vos saúdam” e tem início uma das manifestações mais primitivas do homem, a submissão do mundo pela força, durante algumas horas por todo o campo da arena ouve-se gritos de dor e suspiros de exaustão e desistência, alguns simplesmente não querem continuar e chegam ao fim pela ponta da espada ou fio do machado.


Ao final a terra em volta está rubra de vergonha e com o cheiro forte do ferro que emana do sangue que cobre tudo até onde a vista pode alcançar, em meio a todo este espetáculo o povo vibra a cada golpe certeiro, cada rasteira aplicada com precisão mostrando que só os mais fortes e preparados sobrevivem, o ópio do povo, emoções aplicadas magistralmente por seus organizadores, sabendo que a massa humana precisa compulsivamente de algo que o transporte da dura realidade em que vive para outro mundo, em que quase tudo é possível e está ao seu alcance, decidir até quem vive ou morre apenas apontando o polegar para cima ou para baixo.

A verdade é que com um pouco de sorte tudo isto logo passará e será esquecido, muito provavelmente no futuro distante ninguém se lembrará nem terá registro destas barbáries, nossos nomes serão esquecidos e esta que parece ser a idade das trevas será apenas uma recordação amarga de quem a viveu, restarão os monumentos de pedra e seus mortos perdidos no tempo, ninguém jamais saberá que Roma era o exemplo do mundo civilizado e que por trás de todo o seu discurso político existia uma realidade macabra e extremamente selvagem.

Rio de Janeiro junho de 2010, dois mil anos se passaram e incontáveis gerações povoaram a terra semeando por onde passavam novas culturas, que traziam consigo costumes mais antigos que o próprio tempo. Deixamos para trás hábitos que não compatibilizam com o mundo moderno e civilizado, onde imperam as vontades do consumo e de queremos e podemos, fomos á lua e voltamos, coisa que muitos pregavam ser impossível, muitos ainda duvidam que tenha realmente acontecido, criamos asas artificiais para podermos voar, Ícaro já não é mais um mito, voar é possível, e um atrás do outro vamos desmistificando o mundo que nos cerca.

Nossos arqueólogos cavam profundamente a terra procurando vestígios de como vivíamos no passado para podermos entender o quanto evoluímos no presente, e mesmo, se teremos alguma chance no futuro, desenterramos os nossos mortos que deveriam estar em descanso eterno para que através do que restou nos contem um pouco de sua história, não deixa de ser fascinante, o mistério é embriagante, temos sede de querer saber mais, explorar mundos que nasceram, floresceram e morreram sob o sol e as estrelas. Mas talvez não precisemos ir tão longe para vermos o passado tão presente.
 
 
África do Sul, todas as equipes estão preparadas para o mundial da Copa do Mundo, o Maior Espetáculo da terra, nossos gladiadores estão prontos há muito tempo, foram adaptados, depois de reconhecido o seu talento ás necessidades do combate homem a homem, seus corpos e suas mentes foram modificados e condicionados a vencer e vencer, superar obstáculos mostrando que acima de tudo somos os melhores. Cada nação do mundo conhecido manda seus Gladiadores para afirmar sua superioridade, os favoritos para dizerem ao mundo que o seu “American Way of Life” supera em muito o "Hay q endurecer-se pero sin, perder la ternura jamas".

Preparativos foram feitos e dados foram jogados, apostas correm o mundo inteiro é quase certo que os favoritos somos nós, mas já fomos favoritos outras vezes e não trouxemos a taça e nem por isso deixou de ser um espetáculo digno de ser visto, os gladiadores continuam morrendo, só que desta vez nos seus contratos milionários ou conseguem sua independência através deles, são como os cavalos de raça reprodutores, são os melhores no que fazem. Entretanto, conto esta história fictícia para lembrar que dentro em pouco será tempo de festa nacional, haverá união onde antes parecia não haver qualquer tipo de concordância, os assuntos derivarão para outras camadas e esqueceremos por instantes que a crise Européia pode ficar para mais tarde, depois do jogo, talvez depois da copa mesmo.
A nação brasileira estará unida como poucas vezes se viu em sua história, seremos um, a unidade de um povo, todos nós respiráramos verde e amarelo e nosso senso de patriotismo atinge camadas estratosféricas, olharemos para este nosso belo pais e diremos o quanto nos orgulhamos de sermos brasileiros, mesmo que soframos algumas perdas de gols entre uma cerveja e outra junto com o torresminho, o Brasil é isso aí, a diversidade posta á prova todos os dias do ano a cada minuto. Talvez os outros países não tenham o calor humano que nós temos, nem a suavidade no falar, quase cantando uma melodia para cada silaba, mas com certeza terão seus brios também mais aflorados e olharão para o resto do mundo como sendo apenas o resto!

Curiosamente sempre me pergunto quanta coincidência é o fato de as copas sempre andarem junto com o ano eleitoral para os cargos públicos mais importantes do país, é neste mesmo ano de copa do mundo que decidimos quem será o próximo presidente, o próximo governador e tantos outros que decidirão nosso futuro atrás de suas mesas de mogno e cadeiras de couro. Se vencermos este campeonato mundial estaremos tão embevecido de glória que qualquer pessoa que disser meia dúzia de palavras agradáveis está eleita, imagino que este encontro de dois eventos tão dispares não seja proposital, me deixaria com uma péssima impressão sobre a natureza humana e o modo como uma nação conduz seu povo como rebanho para o abatedouro.
É sabido, no entanto que é neste período de muito clímax que os governos escolhem para explorar as fugas e fraquezas deixadas por nós, para que apliquem seus pacotes econômicos, suas taxas mirabolantes que vão nos deixar um pouco mais pobres sem que percebamos. Com certeza não estaremos prontos para assimilar essas novas medidas, mas isso não fará a mínima diferença a não ser no mês seguinte, ou no outro, ou quando resolvermos ir ás urnas e verificarmos que alguma coisa mudou sem sabermos ao certo o quê.
Ainda assim, precisamos saber dosar as coisas, a nossa seleção merece todo o nosso respeito e apoio, mesmo que não seja a escalação que decidimos enquanto éramos pseudotécnicos, aqueles rapazes fizeram por merecer e sabemos que tentarão ao máximo mostrar que podemos confiar neles como já o fizemos antes, precisamos colorir um pouco nossas vidas com este momento que se aproxima porque até inconscientemente estávamos á sua espera, por quatro longos anos e estaremos esperando novamente nos próximos quatro.
O que não podemos esquecer é de dar o devido valor a este evento mundial e nacional, enquadrá-lo corretamente no nosso calendário e designar a sua real importância, sem menosprezar o valor esportivo e atlético, tenha-se me mente que não resolvera nosso problema político nem financeiro, nossas contas invariavelmente continuarão chegando pela mão do carteiro, nossos impostos não diminuirão, e nossa qualidade de vida não mudará independentemente do resultado obtido nessa guerra de torcidas que se aproxima. Vamos assistir aos jogos e vibrar com cada lance, vamos aproveitar para estreitar laços de união com o vizinho mais próximo, que sempre vemos passar na nossa porta e não nos damos ao trabalho de desejar-lhe um bom dia.
Quero marcar a pontuação no meu calendário de jogos e pensar que se podemos ter um objetivo comum neste momento, porque não após ele? Preciso lembrar-me de ouvir o que as pessoas próximas estão dizendo, mas não apenas ouvir, escutar também. Sempre soube que olhar e enxergar não são iguais, assim como olhar, ver e enxergar também não são a mesma coisa. Perceber o mundo ao seu redor pode ter uma sensibilidade que nem sabíamos que existia. Nem tudo são disputas, nem tudo são negativas, coisas positivas acontecem todos os dias, algumas de maior ou menor intensidade, mas todas de igual importância e efeito. As competições não começaram na antiguidade, elas sempre existiram desde o primeiro momento em que quisemos fazer ou usar algo diferente.
Isso acontece quando compramos uma roupa de marca, um carro melhor, colocamos nossos filhos em escolas mais qualificadas e assim por diante, a partir daí estamos dizendo sistematicamente que “minha roupa é melhor ou mais cara do que a sua”, “meu carro é uma extensão de mim mesmo”, “meus filhos serão mais capazes do que os seus”. Competir também tem seu valor, sem a competição não haveria porque melhorar ou ir mais além, é ela assim como os erros que cometemos que nos impulsionam a seguir adiante, e em outras condições, que minimizem o impacto que sofremos no percurso da vida. Assim evoluímos e supostamente nos tornamos melhores, mais capazes sim, mas ainda habitamos o mesmo planeta e isso até então é imutável.
Compre uma corneta, faça um encontro com seus amigos, confraternize e passe adiante suas idéias e seus temores, torça para vencermos e para que não saiamos derrotados nos meses seguintes, não baixe sua guarda nem sua bandeira, seja ela nacional ou de uma causa justa, acredite acima de tudo que mudar não só é possível como necessário e que o mundo depende do que decidirmos hoje fazer ou deixar de fazer. Viva uma vida completa de sucessos e de prosperidade, leve consigo todos aqueles que estiverem ao seu alcance, ajude aquém quer ser ajudado e “Não deixamos ninguém para trás”. Em junho seremos todos novamente Romanos e acima de tudo SALVE A SELEÇÃO!



Por Ana Paula de Carvalho, http://www.civilidade.com.br/
 
 
## Nota da editora: Parabéns pelo belo texto. Não poderia deixar de publica-lo, pois a Ana Paula sempre envia texto de reivindicações do governo atual. E me enviando esse texto que não tem nada haver com política mostra que suas lutas são sinceras que não quer só meter o pau nos outros, como uns e outros fazem só para aparecer!

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